sexta-feira, 5 de junho de 2009

As mil e uma mortes de Augusto da Fonseca


Ninguém o conheceu vivo ou morto.

A primeira vez que morreu foi quando o abandonou o avô João, ícone da segurança, da aventura e da raça. Depois morreu de novo, quando se despediu para sempre da avó Alice, em cujo colo cabia todos os netos e alguns amigos.

Voltaria a morrer muitas vezes, para tempo depois, como uma Fênix e como queria Melanie Klein, nascer de novo. Outra vez morreu quando lhe morreu o casal de irmãos, levando junto a alegria de viver da mãe e um vizinho chamado Cazinho Bom de Bola, mas não prestava atenção nos ônibus que passavam correndo feito uns danados. Um dia morreu porque apaixonou-se por uma menina de colégio, a Glória, e ela jamais veio a saber disso. Morreu no dia em que ela arranjou um namorado mais feio que ele.

Morreu de novo quando o time em que jogava futebol de salão perdeu a final para o time do Grêmio da escola. Como não fosse o bastante, perdeu um penalty e toda a vontade de sair naquela semana. Veio a morrer novamente quando suando até, encostou o dedo mindinho no dedo mindinho da coleguinha no teatro e ela retirou rápido. A primeira rejeição ninguém esquece.

Morreu, também, quando uma das duas calças compridas – marrom de casimira – sujou de óleo, desgraçado para sair. Ao lavar na Brastemp saiu arrancando um pedaço,
como sairiam todas as suas coisas. Era tão linda aquela calça casada com uma camisa amarelo-ovo que ficou sem par.

Morreu ainda quando se apaixonou correspondido e acabou perdendo o amor para o nada, o medo, a indecisão. Desceu aos infernos no primeiro dia. Séculos depois, quantas travessias para amar a sua casta Dulcinéia, em Paul, e em todos os lugares. Morreu de novo.

Passou muito tempo sem morrer e sem viver.

Só foi morrer quando – sendo ele Flamengo doente – viu seu time perder por causa de um ponta direita muito do ruim de bola perder vários gols e jogar mal. Preocupava-se então com o grotesco do cotidiano.

Em estado morto passou a torcer pelo América Futebol Clube do Rio, junto com seu querido tio Landinho, o que por si só é uma morte lenta e inexorável. Aliás, acabou de morrer.

Morreu insistentemente quando não acabou o primeiro casamento, mas teve que acabar.

Morreu muito, morreu demais. Há coisas além da morte que até Deus duvida.

Morreu historicamente quando o país e as verdadeiras forças armadas foram invadidos pelo esquema dos Estados Unidos, no Golpe de 64, que criou em laboratórios militares de plantão que servem a qualquer sacanagem imperialista. Mas lutou mesmo morto. E morreu de novo.

Que eu me lembre só veio a morrer novamente quando teve que abandonar as redações de jornais e revistas para fazer medicina. Morreria muitas vezes nesse território, cheio de incompletude, pronto-socorros, no fundo. Mas nascia de novo a cada sorriso que se recuperava no outro. E voltava a morrer a cada consciência de que fazia emergência. Não há um curso de Medicina no mundo – achava – há cursos de emergência clínica, uma grande UTI porque ninguém se importa com a saúde, só com a doença. E morria a toda hora, o cara.

Morreu outra vez quando lhe saiu o pai, que era uma mãe, que era tudo. Até hoje conversa com ele, escondido da patrulha senão volta para o Adauto Botelho em outra função. Morreu muitíssimo aí. Dessa morte ressuscitaria, apenas porque foi a pedido do pai. Não me perguntem como, porque não sei. São coisas só dele.

Morreu novamente quando se despediu da mãe e recebeu dela as duas alianças em leito prenhe de infecção hospitalar. Morreu tanto, que pensou em abandonar a Medicina, já que escrevia. Morreria de outra feira quando descobriu que a concepção binária de causa e efeito da psicanálise é uma tolice simplificadora demais. E morreu da teoria. Nasceu pensando as coisas pela Física, e não pelo físico.

Morreu um tanto quando lhe foi o segundo casamento, por – segundo ele – pura incompetência. Eu lhe disse que não era assim, as coisas tem outros lados. Não me ouviu e morreu de novo. Acho que já estava acostumado, sei lá.

Morreu, quando morreu Paulo Torre e, depois, Raimar. Também aí morreu, tanto que o vi ficar com raiva. Pedi-lhe que não morresse, mas novamente morreu.

Teve outras pequenas paradas no intercurso, mas nada que Helinho ou Rogério Montenegro não pudessem acalmar, mesmo tendo tido – sempre quis escrever essa expressão – a perna quebrada por ele em uma pelada no Ouriço Futebol Clube. Morreu um mês, ficando sem jogar bola.

Morreu de novo quando sumiram o próprio Ouriço, o Britz, os bares da Praia do Canto, o Praia Tênis, a navegação costeira e o SMS Ana Nery, irmã do Rosa da Fonseca, o Hillary e o Hidelbrand da Booth Line, os lotações que serviam a Praia do Suá, do Marinho Delmaestro, o vocabulário cabixaba (cancha, ponga, furrupa, camarada...).

Nasceu com Rachel, e morreu dez anos depois. Renasceu com Viviane em encantamento e dor. Logo morreria. Pedi-lhe calma, que não andasse desperdiçando em velórios multicoloridos suas vidas felinas, mas que nada. Precisava morrer para viver.

Fui aos poucos compreendendo isso. Eu chegava a ficar perto de suas tantas sepulturas, calculando o tempo, para assistir o renascimento. E o pegava no colo cada vez mais cansado, mas sempre vivo. Trazia-o, como ainda o trago, com carinho beijava-lhe o rosto dava um banho de banheira, vestia-o com uma de suas melhores fantasias e jogava-o no mundo.”Vai fazer o que eu não consigo, vai, se precisar, pode morrer de novo!”.

Eu cá estou para envolver-lhe em um manto, carregá-lo até a exaustão, dar-lhe sopa na boca e um suco de cupuaçu, como fizeram tantos e tantas que não pudeste ver ou ouvir Peço que deixe que eu traduza o seu pranto e a sua aparente arrogância na meiguice que é.. Comigo pode ser ele mesmo, que não tenha medo.

Agora acabou de morrer. Está censurado, não pode escrever.

Não mais.

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