domingo, 7 de junho de 2009

Amor e gelo

Permitam-me, estimados leitores, que exponha aqui a inevitável admiração por Fonseca (foto), meu amigo idiota, justo agora que acaba de escrever sua segunda obra. Mesmo adepto da própria máxima que lhe povoa a mente – “De onde menos se espera, daí é que não sai nada mesmo” – sou obrigado a mudar de ideia, e o faço com extrema reverência. Por detrás daquelas estranhas e ininteligíveis garratuchas, quantas coisas sutis que sempre pertenceram ao enclausurado mundo de Fonseca vêm operar fora de seu pequenino cérebro.


O seu segundo ataque à flor do Lascio, como insinuam os poucos letrados, tem um insólito título: “Esculhambação - A Organização Caótica do Caos” . Não cabe a mim sequer interpretar o que ocorreu junto à mortalha do pai quando proferiu citando Pessoa: “Não rezem latim sobre seu caixão, ou, se quiserem, rezem. Ele não quer ter preferências para quando não puder ter preferências. A realidade não depende dele nem de ninguém”. Ainda bem. Pois então.


Folheio um livro de contos em busca de personagens. Ultimamente os personagens que encontro são todos projeções de mim mesmo, de modo que acho pouca coisa fora dos meus limites, o que revela uma certa miopia para o mundo criativo, seja como ele for. E dentro de mim paira o caos, o engraçadíssimo caos, pai do humor, dos humores, e da inteligência. Remeto-me à esculhambação.
Estou diante do capítulo 23 das obras completas de Fonseca: um único livro, porém limpinho. Não importa, já que toda a representação é subjetiva e repleta, inclusive, do que não somos ou do que desejaríamos ser. E ai de nós se não fosse assim. Não seria nada. Trato então de reproduzir, fielmente, trechos do 23, o tal capítulo, denominado “Jingobel, Jingobel, acabou o papel, limpei com jornal..."


Não entendi nada, mas acho que Fonseca não tem tal consideração com o próximo: fazer-se entender. Enfim, trata-se de uma obra de semi-ficção contada por seu avô, igualmente Fonseca, quando decidiu abandonar a civilização – a família morava em Caravelas, na Bahia – e foi sozinho arriscar-se nos confins do Judas, o Alasca, depois de entrar triunfalmente nos Estados Unidos, via México, andando feliz pelas areias do deserto com velocidade recorde, incentivado que estava pelos tiros dos guardas americanos de fronteira, que acham que todo mundo quer morar naquela merda. Pior que eles têm razão.


Acabou fixando residência, o Fonseca avô, naquela geleira, onde adquiriu uma cabana abandonada e não tinha contato com ninguém. De seis em seis meses caminhava horas para comprar mantimentos e durante dez anos jamais falou com ninguém ou teve qualquer contato com algo que não fosse banha de foca, carne seca e água. Pois bem.


Barbudo e abandonado pela própria sorte, ou azar, vai saber, estava quase voltando para Bahia, a conselho de Caetano Veloso, que sempre faz isso, só de raiva. Lá teria trabalho, como todos os baianos. No caso dele o sacrifício consistiria em embalar-se em uma rede de armar, colorida em rosas brancas e amarelas, e esperar chover para tomar seu banho bem devagarzinho, entre outros sacrifícios do gênero.


Mas eis que surge o inesperado. Era então tempo de Natal, o frio e a neve não davam trégua.
A solidão que buscava já a havia encontrado de sobra. Tarde da noite, antevéspera do regresso, aparece uma transição entre o homem e a retroescavadeira, ou seja, um cara imenso tanto para cima como para os lados. Bateu na porta e vovô Fonseca atendeu. Falava uma língua que jamais se soube qual era, mas deu para entender.


- Hoje, Natal em casa, você convidado .

- Obrigado.

- Mas vai ter muita bordoada, briga de facão e o cacete...

- Faz parte, naturalmente. Eu sei comportar-me em sociedade...

- Mas vai ter sexo, sacanagem, a lei do desejo, a submissão, o amor sem preconceito, viver o oposto do gelo frio e desafiador...

- Mas é justamente o que estou precisando agora.

- Então aparece.

- Escuta, amigo, qual é o traje?

- Você é quem escolhe. Só vamos estar nós dois. (Fecha o pano, volta o elenco para mais aplausos, a orquestra toca o tema final, fecha a cortina de novo, e abre, e fecha e fica nessa lengalenga).

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