quarta-feira, 29 de julho de 2009

João e os pássaros de Francisco

Um dos Franciscos de mestre João Martins ou "João Ninguém" (como de vez em quando ele assinava sua obras)

João foi-se sem entregar os pássaros do São Francisco que me pintou em óleo sobre tela. Faltavam sim os pássaros rondando o santo, como havia me adiantado ao telefone dando a posição das aves. Foram-se em vôo duplo João e os pássaros.

Que tamanho de pássaros haveria de ter o santo predileto de Martins... Fico com o santo, vai-se o outro e nossos pássaros. Para que servem os pássaros do santo? Estariam onde? Sobre os ombros, nas mãos... Onde João colocaria os pássaros do Francisco, nome de um dos seus filhos?

Penso no cuidado do amor e da arte. Um cuidado que demorou meses para ser concluído e não foi. O que são os pássaros para este gênio português de pura vida, que saiu da Universidade de Coimbra para pintar cartões de Natal nas praças do Rio, lá pelos anos 50, para logo depois, pincel em punho, decorar as paredes do principal restaurante do então majestoso Hotel Glória. E anos mais tarde ser o artífice de obras monumentais em São Paulo e diretor de arte de indústrias consagradas em azulejos... E depois largar tudo isso simplesmente para dedicar amor à sua arte pessoal. Parece coisa de português. E é.

Deu a honra de viver conosco um tempo aqui nesta cidade que amava, como amam todos os amores. Sem motivo aparente. Qualificadísssimo academicamente, certa feita foi convidado por um amigo para ministrar um curso na Universidade Federal do Estado. Não pôde, não lhe acharam à altura do nível de produção e conhecimento do departamento. Tinham toda a razão.

João detestava dinheiro. Literalmente, fugia dele. Raramente – apenas nos surtos de tristeza – desfazia-se de uma obra. Muitas vezes, tendo passado meses pintando um quadro ou esculpindo o novo, desfazia-se de tudo na lixeira da casa.

Confesso publicamente aqui que a maior parte da minha adorável pinacoteca é composta do lixo de João, a cuja casa e amizade tive acesso. Peço ao talentoso Wagner Veiga que não fique com ciúmes. Espere a sua vez.

Uma vez em Lisboa fizemos um passeio a pé apenas olhando os monumentos à nossa frente por acaso. Apesar de ambos sabermos que a arte, assim como a literatura, é a última das metáforas – não tem, portanto, explicação - espiávamos demoradamente à beira do Tejo os monumentos, como se Deus estivesse por detrás, dispondo. Retribuía contando-lhe piadas de português. Ele morria de rir. Costumava contra- atacar argumentando que não há piada de brasileiro. “É tudo verdade”. Calma aí João.

Onde estarão as pombas? Agora volta a me ocorrer a lembrança do São Francisco que João me deu.

Há uns dez anos havia pintado um peixe para mim. O idiota aqui para proteger a obra envidraçou o pescado. Um dia viu, olhou de lado e mexeu o canto da boca sem falar nada. Tirei o vidro.

Viajante que nunca deixou de ser navegou por todo Brasil com suas caravelas, por terra, por mar e por ar. Andou pela Bahia, Rio, São Paulo, mas gostava mesmo era de Vitória, embora nunca tivesse dito isso.

Aqui manteve filhos e neta. Há outros filhos viajantes que se espalham pela Europa, outra em São Paulo. Quem quisesse ouvir e sentir o cheiro d`arte que fosse lá a seu estúdio – desde que convidado - geralmente improvisado em um canto qualquer da casa, ultimamente em uma pequena varanda. Nada mais espaçoso, porque as coisas da arte estão dentro de todos nós e nós pintamos ou esculpimos cada quadro ou escultura à nossa moda e maneira e à medida que conhecemos criamos pessoalmente a obra.

Michelangelo dizia não saber esculpir. Com o cinzel, apenas retirava o excesso de mármore que havia no que havia visto dentro da pedra bruta. Pois é, queridos leitores, parece haver um momento que o escultor deve entregar o trabalho final para a própria figura conservada viva dentro da pedra. Como ocorre no engenho do amor e da paixão. Que a mágica encarregue-se do detalhe.

Por isso sei onde estão meus pássaros, mas não digo a ninguém. Não posso compartir a minha doce loucura, mesmo que quisesse.Talvez ainda estejam com João, pincel em punho, embelezando o céu, quem sabe...

Um comentário:

  1. Para comentar um texto tao bonito precisava ser Brasileiro o Portugues, e nao sou,
    mas gostei demais da intimidade da forma e da delicia das idéias. Joao Ninguem, você tem amigos nesse mundo.

    Danièle
    daniele.weinstein@ymail.com

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