quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Corpo em rede

Um por todos, todos por um

As comunidades do saber psiquiátrico, em discussões ainda que polidas, nos corredores das universidades ou nas conferencias das diversas vertentes do pensamento que tem no inconsciente tão soberbamente descrito por Sigmund Freud sua vertente maior cometem injustiças com os clínicos. Minha querida mãe de fino humor e trato chamava-os, os clínicos, “esses médicos de verdade, que curam”. Dizia isso olhando zombeteira para meu primeiro livrão de Psiquiatria.

Inaugurava para mim uma divisão na qual compartir o universo das ciências médicas, e o mundo das interpretações, seria na verdade, uma falsa divisão entre o pragmatismo essencial e a metáfora do pensamento. Ambos são tão integrados e servem tanto um ao outro que hoje, após mais de trinta anos debruçado por intermináveis e conscientemente consentidas dúvidas teóricas resolvo não resolver nada sobre isso. Já que , como disse Fernando Pessoa , ao sol quando há sol e à chuva quando está chovendo. Não há síntese do sol e chuva. Decidi tentar pensar simples e flutuar levemente pelo assunto.

Contatos e leituras com clássicos e eternos analistas e formadores de mim, tanto no campo profissional quanto pessoal e especialmente com meus clientes e alunos que renegam a aceitação do calar-se ou não serem escutados, forneceram-me combustão. Esta última tarefa – a de desvendar a divisão - vinha sendo para mim tão rica quanto difícil há muitos anos. Hoje não. Pairo nas conversas sobre a filosofia do existir com eles, os ouvintes e falantes, e espero que de alguma forma venha contracenando com todos no setting analítico, terapêutico ou que nome se queira dar a este campo às vezes – raras vezes tenso – às vezes lúdico. Consigo Ser e Fazer muito pouco. Tento facilitar o espaços para o outro Ser. Uma modalidade de não ser para ser eu mesmo no setting. Cito a título de ilustração, e de exemplo o caso de uma pessoa que se tratava comigo e dividia conforme a natureza da questão em pauta os assuntos sobre os quais pretendia, digamos, palavrar, em “papo de Freud” e “papo de Bar”. Tinha lá suas razões. Entendi, creio, que às vezes precisava de liberdade para libertar seu lúdico e sua liberdade. Concordava sempre com essa idéia. E que me lembre, jamais interpretei nada sobre isso. Apenas tentei compreender. Não devemos esquecer que os processos de mudança ocorrem no cliente especialmente. No médico, menos. Deus ajuda o médico, ainda bem..
Então.

Qual é o assunto afinal?

Acho que encontrei um gancho para compartir com vocês leitores fiéis à tarefa de estruturar teoricamente o que chamei de “corpo em rede”.

Apelido de corpo este complexo que a partir de dois elementos – um deles vai para o amor com o papai e volta com a mamãe – forma uma unidade ainda mais complexa que concentra uma rede viva, contendo infinitas vias de conexão entre si e entre outros sistemas da mesma natureza e de outras. Fosse eu ou filósofo diria que este sistema estaria compondo todo o universo – pelo menos a Via Láctea. Mas vamos deixar por menos, ao menos neste esboço de idéias com as quais pretendo atiçar o gozo de algumas pessoas bem pensantes. Tudo parece tão óbvio. Mas não é assim que é tratado pela ciência.

Se é verdade que de uma única célula derivam-se todos os sistemas – os conhecidos e os desconhecidos, como a maioria dos que regem as neoplasias, ou doenças de auto - imunes ou esquizofrenias, acho – podemos supor que haja uma sofisticada ligação de cada célula ou fração a ser descoberta com todas as outras desta uma natureza ovular, digamos?
Essa gente estudiosa que tanto admiro e que dirigiu mentes e afetos na direção do que se chama provisoriamente de Psicossomática precisava criar um sistema que merecesse o mínimo de reconhecimento da Ciência. Esta é responsável pelo mundo e assim deve ser. Quando não dá conta de um fato, cria uma lei a respeito ou traz o fato para dentro de seus limites e linguagem. Vamos lá, vamos ver o que se pode fazer dentro desses inabaláveis limites. Vamos comprometer alguns dos nossos.

Descartes, logo ele, dizia que muitas vezes a ciência – nesse texto a nomeia de “falsa profeta” – comporta-se e assim tem que se comportar, como um cego que tendo que lutar contra um lúcido e caótico gênio criador, veja-se obrigado a levá-lo para uma caverna escura.

A ciência tem a função de organizar o caos, e, quando este não é compreensível para os limites e leis congelá-lo a baixa temperatura até aparecerem os deuses do acaso ou da sabedoria, estes menos frequentemente, para propor axiomas ou outras coisitas razoáveis. Pois então.
Estes, os cientista da vida, angustiados com a idéia de formular um corpo teórico para as funções e a própria existência do corpo a partir dos conhecidos sistemas, das derivações das camadas embrionárias e dos sistemas formados por simples contigüidade, como os tradicionais (digestivo, circulatório, etc) à maneira dos filósofos, criaram uma entidade chamada Mente . Esta senhora não possui a sinonímia de aparelho psíquico – e que teria fundamentalmente as seguintes funções: orquestração e regência de todos os sistemas , conhecidos e desconhecidos pela Ciência, simultaneamente. Por exemplo: hierarquização das funções desses, localização da desorganização deles fora da complexidade geral quando estas se desorganizarem temporariamente. A esta última operação alguns chamam de doença, fixada seja lá onde for, dependendo da predisposição ou provocação (caso do câncer por fumo, por exemplo). Até aqui estas funções pairavam pelo que Freud e outros com outros nomes conceberam como atividades ídicas do inconsciente. A localização não. Sai do Grande Complexo do funcionamento da Pessoa, no sentido com o qual usa Danilo Pellestrelo, aproveita uma deixa e localiza-se de tal modo a tornar-se real, no sentido de realidade, consciente e permitir que se lhe coloque a mão em cima para abordar. Trata-se do que se chama síndrome nosologicamente recortada, com suas características definidas ou consensuais, suas febres, metástases, edemas, alterações relativa nos exames complementares etc. Isto é, parte do sistema complexo “sai para o consciente” – só se sabe que possui um joelho se este doer ou o que o valha.

O Corpo em Rede

A Pessoa – como diz Danilo Peslestrello – é uma integração entre psique e soma que mantém suas características fundamentais. Este sistema – a Pessoa – está composta de infinitos elementos que como já disse articulam-se – todos – cada todos os demais. Há uma complexidade extra. A soma das partes do corpo humana não “fabricariam” o homem. Há, portanto um terceiro elemento integrador que dispõe pelo menos em grande parte, do viver. As religiões e os deuses apossaram-se dele dando nomes os mais variados: almas, sopros etc. Não gostaria de entrar nessa história. Já falo de complexidade demais.

Se acrescentarmos a este sistema Pessoa a especialidade de explicitamente apresentar este relacionamento com o outro através da palavra, que começa de choro, da relação mãe-bebê etc (ver Donald Winnicott) quem sabe não venhamos a compreender o a importância do falar com o outro na relação médico-paciente. O sistema de signos que só o homem possui é muito provável que de alguma maneira atuem fisicamente nesta rede e não apenas como uma comunicação isolada da rede.

Quando Michael Balint criou o termo remediomédico quis passar essa idéia. Assim a conversa na anamnese não é uma questão apenas de simpatia de introdução ao exame de verdade, mas, sobretudo de empatia terapêutica por si só. Esta, a empatia é definida por Carl Rogers como a capacidade de estar em sintonia com o outro. Hoje acho que ele diria, estar em rede.

Ampliemos imaginariamente esta rede de modo a pode nos incluir, nós as pessoas, no ambiente igualmente em rede, pois todos nós já sabemos que vivemos em rede com o ambiente através dos alimentos, do ar, dos grupos, da vida cotidiana. Porque haveria de ser possível, por exemplo, reduzir este sistema complexo a um ou dois órgãos doentes? Uma simples dor de dente – das boas – é capaz de paralisar a vida cotidiana de uma pessoa. As dores e inibições estão igualmente em rede.

A abordagem ao paciente, por suposto, hospitalizado que começa pela palavra no cumprimento da semiologia já é, portanto um procedimento. É o que diferencia na rede o homem dos outros animais. A necessidade do homem sobreviver em rede – em óbvia interdependência – para superar a sua fragilidade – a maior entre todos os demais mamíferos, por exemplo – faz da comunicação pela palavra, olhar etc elementos que estruturam tal sujeito pelo espelhamento e reconhecimento. Em alguns, momentos – na atividade sexual, por exemplo – a comunicação sofisticada e em rede por instantes, passa a ser primitiva e a palavra “regride” para outros sons etc. Afinal, parece, é necessário de vez em quando dar um passeio pelo primitivo, dar uma desorganizada no sistema como um freio de arrumação. Um processo organização-cáos-reorganização.

Talvez passe por aí as loucuras, os carnavais, as fantasias de mulher no homem, o homem na mulher, os carnavais.
Este texto tem a intenção de abrir espaço para compreensão da necessidade de se plantar novamente a interrogação filosófica na cabeça do saber endurecido e banal, muito encontradiço nas certezas científicas.

E nas ignorâncias das feitiçarias.

Paulo Bonates
O autor é mestre em Educação Médica, Psicopedagogia, Psiquiatria, PsicanlalistaProfessor Universitário de Medicina e especialista em Psicossomática.

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