quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Uma palmadinha não dói...


Uma palmadinha não dói... Paulo J.F. Bonates

“As coisas estão no mundo eu que preciso aprender” (Paulinho da Viola em Coisas do Mundo”)

Há muitos e muitos anos, uma cigana-mãe tendo que sair do acampamento armado em um terreno baldio bem em frente à então Faculdade de Engenharia, lado direito de quem vai para Maruípe, como sempre fazia , calçou no filho de seis anos acho uma botinha de couro especial com uma cordinha, e amarrou-o a uma árvore. Feito isso pegou as cartas e saiu foi contar mentira. E ganhar o da comida e ervas para o banho.Costume da tribo.Pra que?

Alguém, não interessa quem, ao passar por ali de nariz em pé no Gordini último modelo, julgou o ato da ordem da tortura e cativeiro. Quando a, digamos, cigana Sara Madalena voltou já havia um fusca preto de pneus carecas e um par de algemas a recepcioná-la. Deu no jornal, saiu na rádio e a mulher sem entender nada parou na cadeia tendo sido bem machucada pelas companheiras de cela. Pegaram o menino e o libertaram, isto é, prenderam em uma desses tenebrosos labirintos para menores cuja função era a mesmíssima de sempre: fabricar delinqüentes a partir da marginalidade.

Estava eu então no ambulatório do hospital São Lucas, aprendendo feitiçaria ou medicina, como queiram, quando uma repórter que, na falta de achar alguém importante entrevistou-me sobre o ato terrorista. Entre orgulhoso e medroso dei minha opinião sobre o 11 de setembro de Maruípe. O que levaria uma mãe praticar tal barbárie contra o filho? Felizmente foi conduzido a tempo para o reformatório onde já havia levado as primeiras bordoadas dos amiguinhos – introduziu a jornalista.

Por causa da minha vasta sabedoria de aprendiz fui ao senso comum. Achava como acho que os gestos de amor e limite na complexa relação mãe-filho são permeados pela cultura é éticas especiais de cada grupo. Não se pode ler ou ver esta estrutura a partir de outra. Naquele tempo como agora raramente há uma interpretação que leve em conta o imaginário social, a ética vigente naquele grupo ou outro qualquer.

Parece indiscutível que a ausência de limites e cuidados gera uma população crescente de marginais e delinqüentes. O limite baseado no espancamento e outras torturas não é limite, é medo. O adulto só bate na criança porque é mais forte fisicamente, Quando cresce, a criança apronta muito mais e não é espancado porque a coisa pode se inverter. Espancar criança é apenas covardia, na maioria das vezes.

Vivemos um desespero. Por um lado a situação de emergência: um nível de violência hegemônico onde faltam as mais fundamentais leis. Autoridades desonestas, em todos os níveis, um sistema de ensino descuidado que fabrica soluções como “passar de ano de qualquer maneira”. Ou fabricar escolas de ensino superior sem o menor critério ou cuidado. Elaborar leis que já existem, como esta de não poder ser candidato quem for criminoso. Estes não poderiam sequer estar na rua. Esta lei já existe. Lei contra o espancamento do filho ou de qualquer outra pessoa também.

Esta questão da relação da família com a criança precisa ser aprofundada e precisa haver família; Esta pode ou não existir independentemente da situação social. Exceção que também paira.

O mundo da criança é infinito. Senão vejamos.

Um dos mundialmente reconhecido psicanalista, ex-pediatra ingles Donald Winnicott dedicou sua vida ao estudo da formação da pessoa a partir da relação mãe-bebê. Do choro vem a fala que insere o sujeito no mundo. Postulou, como fez Freud a base do limite, no Não. Tudo começa na organização familiar.Do “não pode namorar membros da própria família” O não ao Complexo de Édipo (sic freud) Uma palmada – não espancamento – pode ser necessária se a criança não consegue entender ou escutar palavras. Principalmente se não foram ditas, criança não é um idiota que encolheu. Há formas cínicas e sádicas de maltratar uma criança sem tocar nela. Através da indiferença, por exemplo. O contrário do amor não é o ódio – só se odeia quem se ama – mas sim a citada indiferença, por exemplo. Pois bem

Winnicott enveredou pelo desenvolvimento da relação mãe-bebê, ampliada por as relações em rede - self-objetais – no mundo, no corpo, incluindo aí todas as circunstancias da criança: seu corpo e mente, suas relações, sua imaginação, recordações e um interminável etc.,

Ele ,o Donald,falava da Preocupação Materna Primária onde a criança é sustentada por um Holding que protege a liberdade de crescer e não a restringe. Uma palmada, o Não, às vezes é necessária para ser internalizado o Sim. Tal sofisticada relação envolve outros conceitos fundamentais como o Verdadeiro Self e Falso Self, este último, uma formação psicopatológica. Baseia-se na experiência e observação clínica. Se uma mãe – que representa o ambiente social – não consegue decodificar as necessidades da sua criança ou apresenta a não-escuta ou indiferença como “resposta” esta adapta-se à força portanto tirania materna perdendo-se o SER. Terá que FAZER e tornar-se excessivamente adaptativo, “obediente e servil”. Está criado assim o Falso Self. Como não se É tem que se FAZER. Este mecanismo – o Falso self - falsamente protetor gera infinitos distúrbios e fundamentalmente um sentimento de despersonalização, como dizia minha inesquecível professora Inaura Carneiro Leão, além das doenças psicossomáticas .

O Brincar é outro exemplo. É o momento em que a criança adquire a capacidade de transformar o mundo. Pega um lápis e transforma-o em aviãozinho. Muda o mundo a toda hora. Recria as coisas do mundo à sua maneira.

Assim, este maravilhoso e mágico mundo não pode ser reduzido, já que no fundo pertence ao inconsciente, ao imaginário.

Poderia citar inúmeros estudos sobre isso, mas não vou cansá-los. Basta que possamos pensar juntos e proteger de forma científica e embasada, a criança na sua complexidade.

Senão quem leva palmada é a mãe

O autor é médico psicanalista

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